Opnião

Nascemos para atravessar rios

Cara leitora, caro leitor, escrevo para quem talvez nunca irá me ler porque não teve as oportunidades e, muito provavelmente, não saiba ler.
Dias atrás, eu entrava no banheiro de um aeroporto brasileiro e percebi que um senhor estava a limpar o chão. Eu disse “com licença” e, para minha surpresa, rapidamente ele se ficou imóvel como uma estátua, olhando para baixo, como se ele sentisse de uma classe inferior, e com medo de perder o emprego. Mas o meu “com licença” era um modo de dizer, “desculpe”, estou entrando aqui, estragando sua limpeza.
“Seu Chico”, o tiozinho do banheiro de um aeroporto, como tantos outros Josés, Raimundos, Franciscos por aí, que vieram do nordeste, sem saber ler, nem escrever, fazer a vida em São Paulo e fazer São Paulo. Não, não é um fato preconceituoso, antes fosse. É um fato histórico. Ele e tantos outros, migrantes no Brasil e no mundo, saem da sua terra para "ganhar" a vida em grande centros. Ele e tantos outros que são vítimas da desigualdade de tutela, da falta de oportunidade, da falácia da meritocracia.
Querem que o ser humano atravesse mares. Falam-nos todos os dias que devemos pensar grande, que podemos realizar muito. O resultado? Não o desenvolvimento social e econômico, mas a depressão, o pânico, o suicídio.
O ser humano foi criado para atravessar rios: alguns largos, outros menos. A família, os amigos e os próximos são a ponte que nos ajudam a superar esse percurso.
Mas insistem que você nasceu para atravessar o mar, vendem as “receitas de sucesso” de quem lá chegou, e continuam dizendo que não é para desistir dos sonhos, colocam frases do Ayrton Senna da Silva etc. Mas a família dele detinha uma certa condição financeira, uma certa estabilidade, caso contrário não lhe teria sido possível vencer, mesmo com seu talento e competência. Nas igrejas dizem que “tudo é possível ao que crê”, que “tudo posso naquele me fortalece”, mas desfalecem no primeiro obstáculo.
A vida é feita de desafios, fracassos, conquistas, e a estrada que percorremos nunca é reta. Que bom! Só podemos planejar e tentar percorrer, mas o caminho será sempre outro, diferente daquele que planejávamos. Ele só aparece quando damos o passo à frente, e entramos na dimensão e no poder da ação. Aí tudo é acontecimento.
Atravessar o mar é para poucos. Para a maioria, resta o anonimato. E isso não é demérito. Muitos anônimos alcançam a felicidade, e dos que atravessam o mar, o que vemos muitas vezes são casos de depressão e tristeza.
Não desista dos seus sonhos? Que sonhos, se nem tempo para dormir eles têm.
Que o Seu Chico possa ter momentos de felicidade em sua vida, é o que mais desejo àquela nobre alma que limpa o banheiro para os outros utilizarem. E o meu “com licença”, Seu Chico, foi uma maneira de dizer desculpe, meu caro, se como sociedade lhe fizemos e continuamos a fazer esse mal. 

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